O Conceito de “Cultivo” e os Processos de Formação do Ator-Performer

por | jul 2, 2019 | Acervo, Textos

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O Conceito de “Cultivo” e os Processos de Formação do Ator-Performer

Por Cassiano Quilici – Artes da Cena

(Texto publicado no livro “O ator-performer e as poéticas da transformação de si” , ed. Annablume, 2015)

Com a problematização de quase todas as categorias e convenções em que se apoiava o teatro dramático ocidental (ação, enredo, personagem, espetáculo etc) abriu-se uma pluralidade de caminhos criativos para a cena e, paralelamente, certa intensificação do diálogo do teatro com outras áreas da arte (dança, arte da performance, arte e tecnologia etc)  e da cultura (performances culturais, festas, artes marciais, técnicas psico-físicas diversas etc). Ao mesmo tempo, aprofundaram-se as interrogações sobre os processos de formação do que chamarei aqui de ator-performer. Esta categoria tenta dar conta do crescente contato e mescla de teatro e performance, gerando o que tem sido chamado de “teatro performativo” (Féral) ou “pós-dramático” (Lehmann). As questões que se colocam neste trabalho dizem respeito às transformações do treinamento e da formação do artista nesse novo contexto.

Na medida em que boa parte da performance e o teatro que lhe é próximo tendem a desinvestir a ação artística da mediação ficcional, apostando em “acontecimentos” que modificariam mais diretamente padrões de percepção e de relação, os métodos de treinamento têm sido também objeto de inúmeros questionamentos. A idéia de construção e interpretação de uma personagem deixa de ser o foco principal das técnicas, mesmo que ela não seja excluída completamente das habilidades almejadas. Mas se, muitas vezes, a experiência pessoal não está mais a serviço da produção de um mundo ficcional e é ela mesma a matéria principal e ponto de partida do processo de criação, o artista necessariamente terá de descobrir outras formas de trabalho sobre si, de relação com o outro e de desenvolvimento dos materiais. Várias proposições de treinamento passam a valorizar o trabalho com “estados” do corpo-mente, desejando assim desencadear modificações existenciais  significativas e explorar suas potencialidades políticas.

Deve-se notar que, mesmo em diversos métodos do teatro moderno, já estavam implicadas transformações significativas da subjetividade do artista. Basta pensar, por exemplo, na importância da experiência pessoal do ator nos métodos de Stanislawski e Grotowski, ou na formação política do ator brechteano. Em Artaud, especialmente nos seus últimos anos, torna-se explícita a idéia de que o teatro não deve se reduzir à representação simbólica de mitos, mas tornar-se novamente “um lugar onde o homem se refaz”, como nos ritos arcaicos. A tópica da arte como espaço privilegiado para processos de reinvenção da “subjetividade”, do “corpo” etc. , reaparecem e são recriadas em múltiplas variações, pela body art e vários artistas da performance, desde a década de 60. Com esses propósitos, têm sido  mobilizadas e adaptadas uma série de “técnicas de si” (Foucault), saberes práticos, discursos teóricos, advindos de fontes heteróclitas, que se amalgamam, para constituir treinamentos e processos psico-físicos experimentais, de várias matizes. A meu ver, são insuficientes as abordagens teóricas que abordam esses fenômenos apenas pela perspectiva da “produção da diferença” em relação aos modelos culturais hegemônicos e consagrados. Trata-se de considerar a especificidade das diferenças produzidas, a qualidade das experiências desencadeadas (e não apenas sua “intensidade”), e o tipo de transformação que se almeja provocar.

Com o conceito de “cultivo” (shugyo), pretendo trazer a luz alguns questionamentos produtivos a respeito desses treinamentos. Primeiro, é preciso dizer que parto de uma noção estrangeira, exterior à nossa época e à nossa tradição artística e filosófica. É por sua estranheza que quero navegar, para colocar sobre outras perspectivas a idéia do treinamento como “técnica de si” e como exercício transformador do sujeito. Estudada pelo pesquisador japonês Yasuo Yuasa, shugyo é um princípio operativo presente em diversas artes tradicionais japonesas, mas que se origina de um campo distinto- as tradições contemplativas orientais (em especial o budismo) – da qual herda características fundamentais. Em primeiro lugar, o cultivo refere-se aqui há uma prática multifacetada que visa fazer florescer certas qualidades humanas latentes. Estas se manifestariam numa experiência mais profunda e penetrante dos fenômenos e de sua radical insubstancialidade, tendo uma repercussão transformadora no próprio sujeito e nas suas relações com o mundo. As proposições e técnicas desse cultivar são inseparáveis de uma determinada visão do homem e das possibilidades da consciência, que seriam atestadas na realização direta dos praticantes.

Os aspectos múltiplos desse treinamento podem ser sintetizados em três: ética, práticas contemplativas, conhecimento experiencial. O desenvolvimento ético aparece como um elemento fundamental, já que se trata de levar ao cotidiano uma atitude atenta, que aos poucos ajuda a desconstruir hábitos automáticos e grosseiros. O grosseiro identifica-se aqui com tendências arraigadas de negação e reatividade à impermanência, que se manifestam em múltiplas formas de apego e aversão. A ética não se reduz assim a um código moral que deve ser mecanicamente obedecido, mas a um exercício de atenção no cotidiano, que envolvem uma percepção mais refinada da fala, da ação, da intenção envolvida nas atividades. Como se algo da atenção que exigimos de um ator num palco ou numa situação laboratorial fosse levada para o dia-a-dia, tendo em vista a lapidação da percepção e o desinvestimento das energias em hábitos automáticos. Para tanto, às vezes são necessários gestos de contenção, não-ações, que interrompem os circuitos compulsivos dos hábitos. Nesse sentido, a ética pode ser relacionada a uma arte da existência cotidiana, que faz do enfrentamento das situações diárias, um trabalho básico do praticante.

Quanto aos exercícios contemplativos e meditativos, deve-se esclarecer inicialmente que eles não são, em absoluto, um atributo exclusivo de tradições orientais. Como demonstram diversos trabalhos, entre eles o de Foucault (2006), nas escolas filosóficas da antiguidade greco-romana e no período do helenismo, havia diversas formas de articulação entre o saber teórico e práticas meditativas e contemplativas, no “cuidado de si”. No entanto, parece que o Oriente soube preservar e lapidar os processos de transmissão dos vários elementos que compõem essa cultura, mantendo-os vivos e atuantes até hoje. As práticas contemplativas na tradição budista visam a uma experiência da realidade menos mediada pela atividade conceitual e reflexiva. Ao mesmo tempo, não se trata de se deixar levar simplesmente pelo fluxo sensorial e imaginativo, mas de cultivar uma arte da atenção e da concentração capaz de flagrar o surgimento-desaparecimento dos fenômenos psico-físicos, sem reagir automaticamente a eles. O desenvolvimento e a codificação das práticas meditativas nas tradições budistas são de alta complexidade. Há um minucioso mapeamento dos diversos estágios da concentração e da “plena atenção”, das dificuldades que surgem, e dos níveis de realização que podem ser atingidos. Não se trata de uma prática vaga e tateante, mas de um saber preciso, que deve ser realizado na experiência.Estamos assim diante de um conhecimento que se aproxima mais da perícia de um artífice do que da especulação abstrata e desencarnada. É certo que o conhecimento teórico não é negado, mas se apresenta como mapa e roteiro para uma investigação pessoal. A teoria aqui recupera algo do seu sentido grego, do “contemplar”, o “ver profundo” que libera dos enredos ilusórios. Mas, no Oriente budista, o contemplar culmina na dissolução da imagem cristalizada do “eu”, na superação da dualidade sujeito-objeto, abrindo-se espaço para o que Yuasa denominará de experiência da “não-mente” (mushin) .

A importância dos trabalhos de Yuasa para nossa investigação consiste em demonstrar a ligação direta desses princípios com o desenvolvimento de uma idéia de treinamento artístico que aparece, por exemplo, na poesia waka e no teatro ,de Zeami. É bastante conhecido o interesse despertado por essas formas de arte no Ocidente. Referindo-se ao vínculo entre essas linguagens artísticas e toda uma cultura de si, Yuasa aponta para elementos importantes na discussão dos treinamentos. Não se trata de destacar simplesmente procedimentos técnico-artísticos orientais, para construir um “corpo cênico” ou algo assim, mas de abordar toda uma cultura do corpo-mente e suas articulações com práticas artísticas. Essa perspectiva nos parece mais adequada para estudar processos do teatro e da performance que partem da idéia da transformação do sujeito como base da comunicação artística. Não por acaso, o interesse pelas tradições contemplativas aparece em diversos artistas performativos: John Cage, Meredith Monk, Bill Viola, Marina Abramovic etc.

Considero produtivo, no entanto, insistir nas diferenças e tensões entre a noção de cultivo que estamos examinando e alguns elementos práticos e discursivos presentes em treinamentos da performance e do teatro contemporâneo. Primeiro, certa idéia da arte como campo em que se produz modificações nos modos de percepção, contrapondo-se a modelos e padrões hegemônicos. A idéia do shugyo é mais precisa a respeito dos modos de lapidação da percepção que se procura realizar. Ela se pauta numa discriminação minuciosa das qualidades de consciência, segundo o critério do menor ou maior grau de liberdade que se experimenta em relação aos condicionamentos, reatividades, apegos e aversões. Não se trata apenas de produzir “diferenças” em relação a um padrão, ou perseguir “estados alterados de consciência”. Busca-se o aprofundamento de uma qualidade específica que o budismo chama de “estado desperto”. A partir daí pode-se perguntar se, em diversas propostas contemporâneas de treinamento, não faltaria uma compreensão mais elaborada dos estados de corpo-mente desencadeados pelas práticas. Nesse sentido, o diálogo entre saberes específicos do ocidente e as tradições contemplativas orientais podem ser de grande valia.

Um segundo ponto diz respeito à ética como elemento fundamental no treinamento, entendida como exercício cotidiano sobre a fala, as ações e os modos de vida, pretendendo criar as bases para as experiências mais profundas da consciência. Essa perspectiva ajuda a desmanchar certa mistificação do espetáculo ou evento artístico como momento ou ponto culminante de uma transformação radical do sujeito. Por mais que as ações artísticas e performativas condensem circunstâncias que favoreçam modificações significativas nos modos de percepção, relação etc, elas podem se constituir como um momento isolado, não reabsorvido na realidade diária dos participantes. Os questionamentos sobre as relações entre arte e vida, recorrente nas vanguardas, incidem justamente sobre esse ponto. Se a arte pode ser entendida como uma série de saberes e estratégias que visam modificar qualitativamente nossa experiência da vida (e da morte, diriam os budistas), é necessário liberá-la de seus “templos consagrados” (teatros, galerias, museus) e trazê-la para o corpo a corpo com as situações cotidianas. Na idéia do cultivo aqui apresentada, a prática está sempre enraizada no  momento presente, transformando o próprio viver cotidiano numa espécie de arte do despertar, que se reatualiza a cada instante. As ações e obras artísticas strictu sensu seriam apenas expressões condensadas, engendradas na travessia atenta do viver/morrer.

BIBLIOGRAFIA

FISHER-LICHTE, Erika – The Transformative Power of Performance , New York, Routledge, 2008.

FOUCAULT, Michel – Hermenêutica do Sujeito , São Paulo, Martins Fontes, 2006.

YUASA, Yasuo – The Body: Toward an Eastern Mind-Body Theory , New York, State University of New York Press, 1987.

                                     The Body, Self-Cultivation and Ki-energy , New York, State University of New York Press, 1993.

 

Imagem: momagraf/monicamartins.

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